11 de março de 2013

A Menina que Fazia Nevar [Resenha #113]

A Menina que Fazia NevarSinopse: Todos os dias se parecem na vida que Judith McPherson leva ao lado do pai. Eles têm uma rotina simples e reclusa, numa casa repleta de lembranças da mãe que ela nunca conheceu, e as únicas pessoas com quem convivem são os fiéis da igreja cristã a que pertencem. Judith não tem amigos na escola, onde é alvo de gozações, e para encontrar consolo se refugia no mundo de sucata que construiu em seu quarto. Lá, cada dia é um dia, e a vida pode ser incrivelmente feliz graças a sua imaginação. Basta acreditar que a Terra Gloriosa, como ela chama sua maquete, é realmente o paraíso prometido onde um dia vai viver ao lado da mãe. Aos dez anos, Judith vê o mundo com os olhos da fé, e onde os outros veem mero lixo, ela identifica sinais divinos e uma possibilidade de criar. Assim, constrói bonecos de pano e inventa para eles histórias felizes na Terra Gloriosa. O que nem Judith poderia imaginar é que talvez seu brinquedo seja mais do que uma simples maquete. Pelo menos é o que parece quando ela cobre a Terra Gloriosa de espuma de barbear e a cidade aparece coberta de neve na manhã seguinte. Um pequeno milagre, é assim que ela interpreta esse e outros sinais parecidos. Tão pequeno que muitas pessoas poderiam pensar que não passa de coincidência, mas Judith sabe que milagres nem sempre são grandes, e que reconhecê-los é um dom de poucas pessoas. Longe de ser benéfico, no entanto, esse poder traz consigo uma grande responsabilidade. Afinal, seria certo usar a Terra Gloriosa para se vingar de Neil Lewis, o colega que a maltrata todos os dias na escola?

Meu primeiro pensamento a respeito de “A Menina que fazia Nevar” foi de que se tratava de um livro de fantasia, do tipo com seres mitológicos, um mundo mágico, e algo muito importante a se salvar. Não o é, ao mesmo tempo em que não deixa de ser. Contraditório? Pode acreditar que sim.

No livro conhecemos Judith, uma garota que mora com o pai, um sujeito calado que vive de acordo com os preceitos cristãos, e frequentam um culto religioso que prega a aproximação iminente do Armageddon como ele é retratado na Bíblia.

A religião é um tema central no livro, e muito do que você tira dele vem do fato de se acreditar –ou ter fé. Como frequentadores do culto, tentam arrebanhar novos fieis, levando até eles “a palavra de Deus”, para que não sejam – aqueles que ainda não foram convertidos – pegos despreparados, e sem uma chance de sincero arrependimento e posterior salvação. O fato é que esta tentativa de evangelização coloca a Judith e seu pai ainda mais em evidência em uma sociedade que não vê sua religiosidade levada quase ao extremo com bons olhos: não possuem televisão, seguem estritamente a palavra de Deus, enfim, os outros os veem como estranhos.

Todo mundo sabe o que intolerância religiosa pode causar, e este é mais um motivo para que um garoto de sua classe – Neil – a persiga na escola, lhe causando cenas de humilhação que são de doer na alma – e de se torcer sinceramente para que ela se levante e reaja. Mas ela é uma menina, que mora com o pai, e pouco pode fazer a não ser fingir que está tudo bem. E também tem o lance da religião: aceitar os desígnios de Deus.

Até que um pregador faz uma palestra no culto que ela e o pai frequentam e conta a historinha do grão de mostarda: aquela do tamanho da fé e tal. Aquilo muda a vida de Judith, e ela se convence de que, querendo muito e tendo bastante fé qualquer um pode fazer um milagre.

Esqueci de contar que Judith é uma garota bastante imaginativa e esperta para a idade – se não me engano ela tem dez anos. Em seu quarto, ela possui um tipo de maquete, a Terra Gloriosa, que emula o paraíso prometido e que Judith construiu se utilizando de sucata: tampas de garrafa, pedaços de tecido, espelhos, enfim, tudo o que ela encontrava e que poderia ser útil era utilizado para construir e contar histórias na Terra Gloriosa, e ganhava um novo significado pra ela, que extrapolava o sentido da fé por ser também um mundo onde ela poderia ser feliz.

E digo isso por ser a vida dela com o pai bastante estéril.  O pai trabalha, provê a casa, leem e conversam sobre a bíblia diariamente. Mas não passa muito disso. Ele é um homem distante, que não consegue se aproximar da filha e muito disso tem a ver com o fato de ele não ter conseguido superar a perda prematura da esposa, de modo que ficara sempre ferido, e numa melancolia quase permanente. Judith entende este afastamento como um sinal de que ele não gosta dela e a culpa pelo que aconteceu – apesar de ser possível adivinhar ‘o que’, só ficamos sabendo mais adiante no livro – sendo os momentos nos quais ela diz que ele não gosta dela os que representam o maior vazio no qual ela vive, tendo inclusive de se antecipar em algumas situações para não magoá-lo.

A estória do livro começa com Judith sendo ameaçada por Neil no tradicional “te pego amanhã/ após a aula”. Com medo, e se lembrando do que o pregador lhe dissera, ela pensa que seria maravilhoso se no outro dia amanhecesse nevando e as escolas e tudo o mais permanecessem fechados, e pede isso fervorosamente, decorando sua Terra Gloriosa com isopor e outros itens, para parecer que lá nevou também.

E quando ela acorda, percebe que havia nevado.  

Este é o primeiro milagre, e após ele começo a questionar Judith. Seu pai não aceita muito bem o relato que ela lhe dá, pois quem pensa ser ela para fazer milagres? Deus faz milagres, e ponto final. A partir daqui não sabia se ela era realmente “iluminada” ou esquizofrênica. Na falta de ter com quem falar sobre o milagre, ela ouve uma voz, e a reconhece: é Deus.

O livro me causa um bom impacto por de certa forma questionar as religiões como um todo em pontos que eu, pessoalmente, também questiono às vezes: a razão de as coisas acontecerem ou não, o fato de se ter que ter fé e ser dedicado para que algo se torne realidade, e de ter que se aceitar os desígnios de Deus, dar a outra face.

Não sou lá o tipo mais fervoroso de católico, mas penso bastante nestes assuntos e no quanto viver segundo os preceitos da minha religião é complicado e incompatível nos dias atuais. Para o bem do blog vou parar por aqui e não discutir religião.

Através de seus milagres, a vida de Judith vai se tornando mais agradável, as coisas ficam mais fáceis na escola com a chegada de uma nova professora – que “se importa” e não sai da sala pra tomar uns goles – mas ela logo aprende, com a voz lhe dizendo, que tudo tem suas consequências e, sendo elas ruins, não era nada fácil consertar, ou desfazê-las.

É neste dilema que ela vai seguindo, com as coisas, contraditoriamente, se tornando cada vez mais difíceis quando pareciam que tudo ficaria bem e daria certo. E eu torci por ela: para que tudo desse realmente certo – e, confesso, principalmente para que ela reagisse.

O livro é belamente escrito. Se me perguntassem se ele é bom, responderia que é lindo.  Com uma narrativa rápida proporcionada pelo texto bem estruturado da autora, a estreante Grace McCleen, e os capítulos curtos, seria leitura para um dia se não tivesse ficado parando, olhando o nada e pensando no que lia. Por fim acabei deixando as últimas vinte páginas para o dia seguinte, não queria saber o que realmente acontecia e, mais importante, não queria deixar Judith sozinha.

No fim, e em um livro sobre ter fé, o importante mesmo é acreditar.

 

A Menina que Fazia Nevar, de Grace McCleen (The Land of Decoration, 2012Tradução de Renato Prelorentzou, 2013). 312 páginas, ISBN 9788565530217 Editora Paralela. [Comprar no Submarino] [Buscar descontos na CupoNation*]

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14 comentários:

  1. Ta que esses livros com "Meninos e meninas que... " estão virando grife e tudo que é grife as vezes me cansa... Mas a menina Judith pelo o que você contou parece ter tanta coisa em comum com a menina que eu fui um dia (esse detalhe do grão de mostarda foi sacanagem, essa passagem tem uma importância FUN-DA-MEN-TAL em minha vida)... que eu sei que vou ler esse livro.

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    1. Ah, mas quando eu o li imaginei mesmo que você seria uma pessoa que se identificaria com o livro. Só lendo pra ver a profundidade que a autora nos leva em um livro tão bem executado. Vale ler ;)

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  2. Esse livro está na minha listinha há alguns dias, mas, na verdade, ainda não sabia direito sobre o que se tratava... confesso que tinha me interessado pela capa.
    Comecei a ler tua resenha e fiquei "puxa, religião?". É que acho meio complicado falar de religião, que, como alguns outros assuntos, leva ao fanatismo de algumas pessoas, não acha?.
    Mas continuei a ler e vi que, na realidade, o livro é sobre ter fé, o que, na minha concepção, é uma coisa totalmente diferente de religião ou religiosidade; e isso só aumentou minha vontade de lê-lo.

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    1. Carol, eu achei exatamente isso; que é um livro sobre ter fé, se acreditar ou não. E Judith é uma personagem admirável, encantadora, enfim, só lendo pra ver!

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  3. Luciano, a princípio também poderia jurar que o livro teria um apelo mais fantástico. Surpreendeu-me, no entanto, o forte cunho religioso que ele carrega consigo. E ainda que eu não tenha minha religião em alta consideração, achei que esses detalhes não poderiam ter caído melhor ao texto de Grace McCleen. "A Menina que Fazia Nevar" foi, em minha experiência pessoal, só ternura. E achei que sua resenha representou isso muito bem.
    Beeijo!

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    1. Ana, taí uma boa palavra para definir o sentimento que o livro nos provoca: ternura!
      Eu gostei muito do livro, então recomendo sinceramente.

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  4. Toda criança usa da fantasia para superar obstáculos - tipo a esperança para os adultos - é bom pensar que tem 'poderes'. A autora foi feliz em relacionar à religião, pois conseguirá arrebanhar muitos leitores que procuram uma leitura mais amena. Não é o tipo de livro que escolheria para ler, mas fiquei curiosa com a escrita da autora estreiante. Boa semana!! Beijus,

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    1. Luma, a autora tem um bom gancho em mãos e a "parte religião" é muito bem utilizada. Eu gostei, muito ;)

      Boas semanas.

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  5. Linda e emocionante resenha! Acabei de comprar esse livro por ter me interessado ao ler a sinopse e agora com o seu relato sei que vou amar.
    Acho que todos nós criamos o nosso mundo sendo que uns mais do que outros e a fé remove montanhas e o importante é mesmo acreditar.

    Beijos


    Saleta de Leitura

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    1. Irene, eu fico esperando sua resenha então ;) acredito que você vai gostar do livro.

      Beijos.

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  6. Eu sempre fico meio com o pé atrás com livros de cunho religioso, mas este eu me interessei por me lembrar muito A Ponte Para Terabítia, um dos meus livros preferidos, então já o marquei lá no skoob.

    Parabéns pela resenha incrível. Tudo Tem Refrão

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    1. Ágata, o tema não é explorado de forma que afaste leitores: a autora questiona, sim, e isso faz com que o leitor vá junto, mas tudo é feito com muito bom gosto. Vale ler.

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  7. Este é um livro que desejo muito ler, me pareceu interessante e foge do óbvio. A Paralela está com um catálogo muito bom e achei essa capa linda também. Creio que seja o tipo de livro onde é quase impossível saber o que vamos encontrar e traz sempre surpresas boas, entrou para a lista com certeza!

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    1. Lu, a Paralela tem um catálogo admirável, e este livro mexeu bastante comigo, me fazendo questionar muita coisa do que já achava "definitiva" em minha cabeça. Vale ler, com certeza.

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Oscar