28 de março de 2012

Ganhando Meu Pão [Resenha #045]

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Sinopse: Em Ganhando Meu Pão (1916), o segundo volume de sua trilogia autobiográfica, Górki narra seus anos de formação, os primeiros trabalhos, leituras e experiências sexuais, a vida em meio à brutalidade e a penúria de uma Rússia ainda patriarcal. Entre as lendas e histórias do folclore, contadas com talento literário pela avó analfabeta, e a prosa dos grandes autores do país, que o menino descobre com fascínio, Górki forjou um estilo único. A incompreensão em torno de sua vida e obra está entre as maiores injustiças que a história do século XX fez com um escritor da envergadura de Górki. Pela primeira vez, o leitor brasileiro poderá ler a trilogia na íntegra (Infância, Ganhando Meu Pão e Minhas Universidades) e conhecer algumas das mais belas páginas da literatura memorialística.

 

Poucas vezes uma sinopse exprime tamanha verdade sobre um livro ou seu autor quanto à de Ganhando Meu Pão. O trecho que diz: “A incompreensão em torno de sua vida e obra está entre as maiores injustiças que a história do século XX fez com um escritor da envergadura de Górki.” é uma verdade incontestável. Górki é muito menos lido do que mereceria, do que a qualidade de sua obra faria supor. Mesmo entre os que costumeiramente leem escritores russos, acabam deixando Górki de lado. Após conhecê-lo, através de alguns contos e deste Ganhando Meu Pão, que reli agora pela segunda vez, não posso deixar de estranhar este fato. Górki em nada fica devendo aos outros grandes mestres russos, chego até a pensar que, em muitos pontos, os superam.

Esta é a terceira vez que tento resenhar este livro. Não consigo nem ao menos exemplificar os motivos pelos quais ele me tocara. Sua leitura constantemente nos faz tomar uma pausa, para pensar em como é possível que, há tão pouco tempo, as coisas se passassem desta maneira, e, consequentemente, é comum nos perguntarmos, mesmo sabendo que a própria pergunta a responde, como aquele menino se tornou um dos maiores escritores de todos os tempos.

GórkiEm Ganhando Meu Pão, Aleksiéi Maksímovitch Piechkóv nascido em Níjni-Nóvgorod em 1868, que usava o pseudônimo Maksim Górki (Máximo, O Amargo), narra suas primeiras experiência com o trabalho, os livros e a sexualidade, e fiquei assustado em como a Rússia da sua época era severa e injusta: sendo criança, aparentemente todo e qualquer um minimamente mais velho que você tinha o direito de te bater e humilhar; assim como, desde muito cedo, as crianças tinham de trabalhar para garantir seu sustento.

Os castigos físicos e as brincadeiras de mal gosto estão presentes de tal forma na cultura da época que qualquer um que não faça parte disso nos parece um anjo, como é o caso da avó do escritor. Sendo órfão, Górki passa a viver sob os cuidados dos avós, e os momentos mais tocantes do livro certamente são as passagens em que ele conversa com sua avó, ou que se recorda dela, uma mulher analfabeta, mas dona de um conhecimento de fazer inveja a muitas pessoas letradas, pois conseguia, como muitos poucos, enxergar o mundo de forma terna, embora realista.

E, quando me lembro da vovó, tudo o que é ruim e ofensivo se afasta de mim, se transforma, tudo se torna mais interessante e agradável, e as pessoas melhores, mais queridas. – Página 118.

e falando com a avó, sobre a vida

- E você mesma, viveu bem?

- Eu? Vivi bem. E mal também, de todas as maneiras – Página 153

Górki era muito sensível a essa brutalidade da sociedade em geral. As agressões físicas o incomodavam – porém reagia quando necessário – o alcoolismo, a devassidão de homens e mulheres, principalmente a forma como tratavam o amor, falando dele de forma rude, agredindo o sexo oposto; isso confundia-o, pois era bem diferente do amor puro e sincero que começava a ler nos livros.

Mas nada é ruim para sempre, então, se de um lado Górki encontrara pessoas más, que o agrediam de todas as formas possíveis; de outro, durante sua adolescência, diversas personagens foram fundamentais para formá-lo como leitor, caso do cozinheiro de um barco onde trabalhara como lavador de pratos; e, pouco depois, de duas vizinhas que tivera enquanto morava na casa de sua tia-avó. Os livros lhe mostraram toda a diferença que havia entre a Rússia pobre e hostil na qual vivia, e o esplendor, por exemplo, dos cenários descritos nos livros de Dumas Pai, deixando-o por vezes amargurado e confuso

Com cada livro novo, essa diferença entre a vida russa e a de outros países aparece diante de mim com maior nitidez, suscitando uma confusa mágoa, fortalecendo a desconfiança da veracidade das páginas muito usadas, amarelas, sujas nos cantos. – Página 205

(…) compreendi muito depressa que, em todos esses livros interessantemente emaranhados, apesar da variedade de acontecimentos, das diferenças de países e cidades, se tratava sempre do seguinte: as pessoas boas são infelizes e perseguidas pelas más; estas são sempre mais inteligentes e tem mais sucesso que aquelas, mas, no final, algo imperceptível vence as pessoas más e as boas triunfam obrigatoriamente. – Página 204.

Sem dúvida, foram estas experiências que fizeram de Górki um autor tão capacitado em observar o mundo ao seu redor e conseguir retratá-lo de forma tão vívida em palavras. É emocionante percorrer as páginas de seu relato e imaginar tudo pelo que passara. Pouquíssimas pessoas são capazes de pintar com cores tão vivas acontecimentos de toda a  sua vida, fazendo sempre questão de mostrar a realidade e mesmo os vícios de uma sociedade cruel e hipócrita. Pena que, já no fim, tenha sido tão questionado por suas posições. Hoje, nem mesmo temos certeza do que causou sua morte, em Moscou em 1936. Há quem diga que foi morto a mando de Stálin.

Certamente é um autor que deveria ser amplamente lido. Lendo suas memórias, cada leitor se identificará com seus anseios, com os questionamentos que ferviam em sua mente, as incertezas, os desejos. É uma bela viagem a uma Rússia não tão bela.

para mim o livro era um milagre, nele se encerrava a alma de quem o escrevera; abrindo o livro, eu libertava essa alma, e ela conversava misteriosamente comigo. – Página 263.

 

Ganhando Meu Pão (V liúdiakh, 1916Tradução de Boris Schnaiderman) Maksim Górki – 456 páginas, ISBN 9788575036501, Editora Cosac Naify.

{A+}

Esta resenha está pronta a quase um mês, mas achei melhor esperar para publicá-la hoje, 144º aniversário de nascimento do autor. Estou pensando em um determinado evento sobre Górki, que será sugerido em breve. Espero contar com vocês.

Mais uma vez, é incrível como é difícil falar sobre algo que nos agrada tanto.

22 comentários:

  1. Nossa, sua resenha ficou complexa mesmo. Achei muito interessantes os pontos que você levantou, e gostei também da homenagem ao autor. Parabéns!

    Abraços

    Lu Tazinazzo
    http://aceitaumleite.blogspot.com.br

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    1. Lu, gosto muito de Górki, me agrada muito a forma como ele escreve, e é incrível em como tenho dificuldade de explicar as razões. Comigo isso acontece sempre, é difícil falar sobre o que gosto tanto.

      Grande abraço.

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  2. Sabe aquele livro que vc sente que PRECISA ler?!?! Pois é, senti isso agora!!! Górki fala de vida, gosto de livros assim, alguns trechos dele que vc selecionou me lembrou minhas próprias experiencias sobre leitura, sem contar que muito me interessa um literato falando sobre sua vida.

    Valeu pela dica, que não se propunha se dica, mas foi!!!

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    1. Pandora, se puder leia, e depois ficarei curioso para saber o que achou. Górki tem esse dom de fascinar, de deixar curioso, que poucos autores possuem hoje em dia. Boas leituras ;)

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  3. Adorei: "...abrindo o livro, eu libertava essa alma, e ela conversava misteriosamente comigo" (por que ele se achava imortal?) Górki, vive!! Assim como todos os escritores que já partiram dessa vida e tinham ideias diferencidas, não participando dos resultados das pesquisas de Charles Darwin!! O mundo era louco, aquela época! Sei que Górki foi muito importante e até hoje é agraciado na Rússia com homenagens. O Festival de Poesia de Berlim considerado o maior da Europa (Sim, da Europa) é realizado no Teatro Maxim Gorky. Na época que ele viveu, a "Mãe Rússia" decretava guerra contra "Hitler" e ao mesmo tempo, havia uma guerra de ideias religiosas, do ateísmo científico contra a Igreja Ortodoxa. Stalin perseguia diretamente a Igreja Ortodoxa e Gorki criticava os ateístas somente pela forma rude como desrespeitavam as religiões; ele era da elite dos Bolsheviks e acreditava que o socialismo poderia re-criar a humanidade sem as religiões antigas. Stalin e Gorki praticamente eram da mesma turma.
    The Immortalization Commission, livro de John Gray plantou a semente da imortalidade na cabeça de muitos leitores e escritores dessa época e Gorki foi um deles, ele acreditava na "não-morte" ou imortalidade.
    O cenário religioso russo, continua do mesmo modo arcaico com pessoas praticando magia negra, vampirismo... faz pouco tempo que crianças passaram a ser tratadas como crianças. Na idade medieval eram tratadas como adultos em miniatura.
    Já li muito sobre Górki, mas ainda não li nenhum livro. Assisti dois filmes: Ralé, o mais polêmico de Akira Kurosawa e um sobre ciganos, que não lembro mais o título.

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    1. Luma, Górki era - e ainda é - uma figura e tanto. Gosto muito da forma como ele encara o mundo, mas, confesso, que esse modo de se tratar as crianças me chocou, é muito diferente da realidade que vivemos hoje, mas talvez sejam essas passagens que fazem da Rússia um lugar tão misterioso e encantador.

      Vou procurar este filme do Kurosawa, e muito, mas muito obrigado mesmo pelo comentário!

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  4. Luciano

    Gostei muito de saber sobre Górki e lendo e relendo sua resenha fiquei emocionada pelo desenrolar da história. Viver na época em que ele viveu não tem como não ter "uma vida amarga". Livros que são uma porta aberta "Os livros lhe mostraram toda a diferença que havia entre a Rússia pobre e hostil na qual vivia, e o esplendor, por exemplo, dos cenários descritos nos livros de Dumas Pai, deixando-o por vezes amargurado e confuso."


    Nunca li um livro de Górki e talvez se estivesse com ele em mãos ficasse em dúvida de conseguir ler até o final. Sempre bom estar por aqui para conhecer um pouco mais e receber dicas de alto nível.

    Vai ser muito bom esse evento sobre Górki e pode contar comigo.

    Beijos
    Irene

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    1. Irene, Górki tem um estilo todo seu de contar histórias, e é admirável como ele consegue compor cenários e passagens que viveu quando criança, por exemplo, deixando-os tão vivos em nossa imaginação.

      Já tenho o tal evento esquematizado, muito bom saber que posso contar com você ;), só falta encontrar uma edição decente para dar partida, as que encontrei até agora estavam sem condições. Quando der certo te atualizo.

      Grande beijo.

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  5. Antes que se assustem, o livro possui 456 páginas, e não 3456, como está nos dados bibliográficos. De casa eu corrijo.

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  6. Oie,
    Sabe que todos os blogueiros deviam fazer algo assim, ler um autor que pouquíssimos ou quase ninguém ouviu falar, ou que fazem tempo que não aparecem em blogs e nas mídias sociais, para contar aos leitores o que achou dele ou do que escreveu. Confesso que nunca tinha sequer ouvido ou lido algo sobre "Ganhando meu pão" e o autor. E depois de ler sua resenha fiquei admirada em saber que uma obra assim nunca chegaria a meu conhecimento se você não o tivesse lido e resenhado. Parabéns amigo, obrigado por me apresentar esse autor....e com certeza espero poder lê-lo um dia.

    Beijokas da amiga Elis

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    1. Que bom Elis! Sabe, Górki merece ser lido amplamente, e foi um prazer poder falar sobre sua obra aqui. Acho que é um pouco a nossa função: muito além de mostrar lançamentos, devemos resenhar aquilo de que gostamos de ler habitualmente.

      Grande beijo ;)

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  7. Demorei pra ler esta resenha, mas enfim tou aqui. E valeu muitíssimo a pena, percebe-se que você realmente lançou um olhar aguçado à obra - assim como esta também aguçou seu olhar, dialética, hehe. Sim, Górki não é tão popular e lido quanto meu amado Dostô e o Tolstoi, eu mesmo sou um dos que ainda protelam a viagem por suas obras - Infância tá me aguardando lá na minha estante. Sobre a infância, de fato até então, na Rússia, a criança ainda era concebida como um mini-adulto, embora no resto da Europa, a essa época, essa concepção já caíra (em parte) por terra, graças à visão de alguns educadores e filósofos; e engana-se quem acha que só benefícios essa releitura, estabelecendo agora a infância como tal a conhecemos hoje, trouxe aos pequenos, mas deixemos essa discussão pra depois (mas sim, concordo que, entre benefícios e desvantagens, houve mais aquelas que estas, até porque psicologicamente a criança começou a ser tratada como tal, com seu universo particular e de aprendizagem/apreensão do mundo bem distinto do adulto). Aliás, Dostô era um escritor que, a despeito deste cenário arcaico em voga na Rússia, já via a criança como tal: uma criança (recomendo Niétotchka Niezvánova, em que ele, através da narração em primeira pessoa da personagem-título, investiga os processos de desenvolvimento psicológico e moral do ser humano da primeira-infância à adolescência, antevendo, até, concepções freudianas). E agora me esqueci do restante que eu comentaria aqui. Abração e parabéns pela resenha!

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    1. Meu querido amigo Jorge! Ando muito ansioso com uma resenha sua de algo do Górki, então trate de adiantá-la, rsrs #impaciente É quase um mundo diferente a Rússia daquele tempo e o tranquilo Brazil que vivemos hoje, por isso tamanha estranheza com os tratamentos dado. Mas não só por isso: a pobreza, o sofrimento, é tudo paupérrimo e aterrador. Tenho aqui dois russos para ler, o Dosto que me indicou dauqlea vez e meu primeiro Tchekov. Veremos como me saio, quero fazer algo com os russos, mas ainda não sei, como te disse, o formato. Veremos.

      Abraços.

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    2. Pode me envolver diretamente nessa empreitada com os russos, que é minha área, hehe. E olhe, eu não chamaria o Brasil de hoje - e nem de ontem - nem um pouco de "tranquilo", rs. E sim, a Rússia de ontem - e de hoje - é um mundo totalmente diferente do nosso, (semi)feudal ao passo que o resto da Europa vivia uma fase de prosperidade econômica, intelectual e científica, onde a pobreza e a miséria imperavam MESMO, o poder extremamente centralizado nas mãos do czar, ideias revolucionárias exógenas eram ferrenhamente combatidas pela maioria tanto pelo ufanismo exacerbado do país quanto pelo cenário conservador/reacionário (e Dostô, inclusive, tornou-se um destes reacionários, embora de um modo singular), etc. Bem, há muitas outras coisas a tratar, mas aí eu escreveria demais. Abração!

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    3. Só um adendo: o resto da Europa vivia uma fase de prosperidade econômica em termos, melhor dizendo, pois miséria sempre existiu nos outros países, e com as transformações profundas ocasionadas pela Revolução Industrial aquela se acentuou.

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    4. Jorge, é que lá a coisa era tão feia que aqui até parece um paraíso. Então, conto com você mesmo para o evento, rsrs, até tenho que ver o nome: acho que "Os Russos" pode limitar o espectro de autores, gostaria de englobar mais, quem sabe, talvez, "Os Soviéticos".

      Veremos ;)

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    5. Só cuidado com o título "Os Soviéticos", pois então pre-supõe-se que estamos apenas englobando os escritores da era soviética, depois da Revolução Russa, quando a Rússia tornou-se URSS.

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    6. Este comentário foi removido pelo autor.

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    7. É, tem essa também. Já pensei em "Os Sovietes", mas ai podem pensar que diz respeito ao conselho e tal, então temos que ver direitinho.

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  8. Uma dica, Luciano: esse livro tá em promoção na Saraiva, por R$ 4,90!!!

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    1. Pois é João, eu vi lá, pena que os livros um e três nuncam entram em promoção :(

      Abração.

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  9. "Rússia da sua época era severa e injusta"

    o mundo é severo e injusto.

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Oscar