22 de outubro de 2012

Adormecida [Resenha #077]

Adormecida

 

Sinopse: Rose Fitzroy esteve dormindo profundamente por décadas. Imersa num sono induzido, esquecida em um porão por mais de 60 anos, a jovem foi tratada como desaparecida enquanto os anos sombrios pairavam sobre o mundo. Despertada como por encanto e descobrindo-se herdeira de uma corporação multimilionária, Rose vai entendendo pouco a pouco, tudo o que aconteceu em sua ausência. Ela descobre que seus pais estão mortos. O rapaz por quem era apaixonada não é mais que uma mera lembrança. A Terra se tornou um lugar estranho e perigoso, especialmente para ela, que terá de assumir seu lugar à frente dos negócios. Desejando adaptar-se à nova realidade, Rose só consegue confiar numa única pessoa estranhamente familiar. Rose até gostaria de deixar o passado para trás, no entanto, ao pressentir o perigo, percebe que precisa enfrentá-lo - ou não haverá futuro.

Quando vi adormecida pela primeira vez achei que se tratava de uma releitura mais, digamos, literal, da Bela Adormecida, e voltada ao sobrenatural, mas não foi isso que encontrei em suas páginas. Com questionamentos pertinentes quanto aos conceitos de família, sociedade e o que raios estamos fazendo com o planeta, ele se mostra bastante inteligente discutindo com propriedade temas que são sempre espinhosos.

Em um futuro distópico, o ser humano ferrou com o planeta e uma doença antes controlada dizimou grande parte da população. Até aí tudo bem, estamos falando de uma distopia, mas o diferencial aqui é que uma sociedade caiu e outra surgiu sobre seus escombros da melhor forma que os sobreviventes puderam fazer – ou seja, com muitos desvios de moral e etc. – a vida se reestabilizou, sessenta anos se passaram e Rose estava... dormindo, através de um processo descrito no livro como estase química, uno qual uma pessoa poderia adormecer por um determinado período de tempo, em uma máquina – espécie de câmara – que manteria suas funções biológicas.

Não foi a primeira vez que vi o sistema ser descrito, ele é muito utilizado em histórias de ficção científica, principalmente para tornar viáveis as viagens interplanetárias, sem o qual elas seriam impossíveis, pois nem tudo mundo é um Kirk ou um Spock da vida, que tudo o que tem de fazer é se segurar na mesa de controle enquanto a Enterprise dispara universo afora. Assim, o astronauta/cosmonauta/taikonauta entra na câmara, dorme algumas centenas de anos-luz e acorda no destino, tão jovem e forte quanto antes.

Mas os pais de Rose usam o sistema de outra forma: para desestressá-la, para ajudá-la  a superar momentos difíceis, e também enquanto eles tem que fazer longas viagens de negócios e não podem deixa-la sozinha. Os pais do ano, você diz, mas Rose não encara desta forma.

Para Rose estar em estase é um fato natural, e se lembra que o faz desde “sempre”. Isso a ajuda, ela acredita, a se recuperar de abalos emocionais e ultrapassar alguns obstáculos que por ventura surjam em seu caminho. O que ela não percebe é que vive em um mundo inventado, que não consegue construir sua própria história e o quanto é sozinha.

Solidão é uma palavra que se adequa muito bem a grande parte dos dias de Rose pós-estase. Sendo despertada por Bren sessenta anos depois de sua mãe colocá-la para adormecer, ela não tem mais parentes, o mundo esta completamente diferente, e mesmo seu amor da juventude não é quem a recepciona ao acordar.

E esqueça a contagem racional do tempo. Por ficar tanto em estase, o tempo conta de forma diferente para Rose, então não estranhem quando Xavier, um amor de sessenta anos atrás,  for apresentado como um bebê que ela carrega no colo e depois como seu melhor amigo, apenas dois anos mais jovem que ela. Estes hiatos, ou seja, os períodos em que passa em estase química, alteram completamente o mundo a sua volta, e a própria formação dela como pessoa, seu conjunto de lembranças, sua estrutura psicossocial, tanto que a única coisa que se mantinha todas as vezes em que acordava era a presença de Xavier.

É um pouco estranho vê-la sofrer pela perda do que nunca teve. Nunca teve amigos, com exceção de Xavier, uma vida contínua, sem interrupções, e mesmo sua família era um tanto fria com ela, por trás da aparente solicitude de seus pais. Mas, pensando bem, quando se tem tão pouco, ou quando tudo o que se conhece é aquilo que se tem, você se agarra com todas as suas forças para não perdê-lo. Rose sente essa perda, e demora a conseguir reagir.

Mas o livro não se restringe a isso. Sendo herdeira de uma megacorporação, nem todo mundo fica satisfeito quando a encontram, pois um herdeiro pode ser uma grande pedra no sapato de quem tem, até então, a empresa nas mãos. Ela não conhece ninguém, não sabe em quem confiar, e mesmo que tenha um novo grupo com o qual conviver na escola ela não sabe até onde essa aproximação é sincera, o que não impede que um novo amor se insinue, assim como uma improvável amizade.

Além da solidão, Rose convive com a culpa. Não que ela tenha feito algo para merecer passar sessenta anos esquecida em uma câmara de estase, mas mesmo assim ela tem uma auto-estima tão baixa que chega a dar raiva.

No decorrer da narrativa a autora via dissecando tanto presente quanto passado de Rose, o que nos ajuda a entendê-la. Falar sobre isso seria entregar o que de melhor Ana Sheehan construiu. É um livro sobre relações, e como elas ajudam a moldar as pessoas que nos tornamos.

Adormecida leva o conto da Bela Adormecida para o futuro, mas nele a personagem principal tem muito mais dificuldade em se adaptar, e o felizes para sempre parece um tanto quanto distante. É uma distopia inteligente e questionadora, com uma atmosfera sombria e mesmo opressora, como se constantemente quisesse mostrar ao leitor o quanto Rose está perdida em um mundo que há muito tempo não é o dela. O final é uma promessa ao leitor. Será cumprida?

 

Adormecida, de Anna Sheehan (A Long, Long Sleep, 2011Tradução de Camile Mendrot, 2012) 272 páginas, ISBN 9788563066480 Editora Lua de Papel. [Comprar no Submarino]

{B+}

10 comentários:

  1. Esse livro parece ser muito ousado e desenvolvido. Não sou grande fã de sci-fi, mesmo os mais "distópicos", e percebi isso quando li "A Máquina do Tempo". Leria Adormecida sem problemas, mas talvez num outro momento.

    Abraços!

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    1. Lu, ele trafega num ambiente interessante: ao mesmo tempo que é bastante maduro quando trata da FC, não escapa das situações colegiais que tanto se vê por aí. Mas é bom no todo, não tive muitos problemas com ele.

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  2. Oi Luciano!
    Nossa, a análise que você fez da situação da Rose foi perfeita!
    E gostei da comparação com Star Trek também ;)

    Beijos,
    Sora - Meu Jardim de Livros

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    1. Sora, obrigado ;) Rose é uma personagem intrigante, gostei dela ;)

      Beijos.

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  3. Adormecida já está na minha lista há alguns dias, agora é que ele não sai mesmoooooo e ainda ganha o selo: "Preciso desse livro!"

    Eu sou do tipo que acha tentadora essa ideia de simplesmente dormir por cem anos... Uma vez levei a maior bronca de uma amiga por conta disso, segundo ela se eu dormisse 100 anos poderia acordar e perceber que faço falta para alguém... Se ela não tivesse sido tão ignorante e quase tivesse me batido ao dizer isso eu teria corrido o sério perigo de ter ficado emocionada kkkk...

    Em síntese, preciso desse livro já!!! rsrs

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    1. Hahaha! Tem pessoas que não sabem ser sutis, como sua amiga, rsrs. Eu gostei do livro, não é tão grande, mas, ao mesmo tempo, a autora consegue trabalhar bem os pontos que propôs.

      Vale ler.

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  4. Quase toda resenha que eu li, tinha essa mesma impressão, de ser um livro sobre a Bela Adormecida com sobrenatural e acabou encontrando um enredo diferente.
    Distopias vem ganhando cada vez mais "presença" no mercado editorial. Eu mesmo, estou virando um fã do gênero.

    Excelente resenha!

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    1. Lucas, e eu gostando cada vez mais de distopias, rs. Este foi um livro que me surpreendeu, não esperava que fosse tão denso desta forma. Muito bom.

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  5. Acho que todo mundo pensou que se tratava de um conto de fadas moderno baseado na Bela Adormecida, o nome realmente faz a gente pensar isso. Parece ser uma história bem melancólica, eu acho que gostaria de ler.

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    1. Cris, acho que sim. A capa e o título ajudam nesta impressão, mas que bom que estamos errados, o livro segue por um caminho bastante maduro e surpreendente.

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Oscar