7 de janeiro de 2013

O Teu Rosto Será o Último [Resenha #097]

O Teu Rosto Será o Último

 

 

 

 

Sinopse: Uma obra fascinante com uma estrutura exemplar, o livro de estreia de João Ricardo Pedro, foi o grande vencedor do Prêmio LeYa 2011. Partindo da Revolução de 1974 em Portugal, este romance constrói a história de uma família marcada pelos longos anos da ditadura, pela repressão política e pela guerra colonial. Duarte, cuja infância se desenrola sob os auspícios de Abril, cresce envolto em memórias alheias que formam uma espécie de trama onde qualquer segredo se esconde. Pianista precoce e talentoso, afigura-se como o elemento capaz de suscitar todas as esperanças. Terá a sua arte essa capacidade redentora, ou se revelará, ela própria, lugar propício a novos e inesperados conflitos?

Minha primeira reação, após fechar meu exemplar de “O Teu Rosto Será o Último”, foi soltar um sonoro “Filho da Puta!”, assim mesmo, com iniciais maiúsculas. Mas, apesar de o livro merecer o adjetivo – e é de um tom elogioso, eu juro, e pretendo mostrar isso nesta resenha – não sei a quem o dirigi. Se ao autor, João Ricardo Pedro, se a um dos três membros da família Mendes que acompanhamos: o médico, Augusto Mendes, o militar António ou mesmo a Duarte; ou, ainda, a algum fato que deixei escapar na leitura. Pode ser qualquer um deles.

O que tem me surpreendido nos livros da Coleção Novíssimos, da Editora Leya, que tenho lido, – “No Meu Peito Não Cabem Pássaros” foi, em minha opinião, o segundo melhor livro do ano passado – é o modo como chegam de mansinho, com seus autores narrando suas obras com uma certa despretensão que, quando me dou conta, já me envolve por completo.

Apesar de ambos, e este em especial,  não terem uma estrutura simples, a leitura é bastante fácil, e não se encontra problema algum em acompanhar a estória. É natural de uma forma tão fascinante que poucas páginas preenchem todo um mundo, e nos transporta para ele, nestes dois casos, com extremo sucesso.

Em “O Teu Rosto Será o Último”, livro que parte de um incidente aparentemente comum mas que terá ramificações impensáveis, abrangendo personagens e fatos que numa primeira olhada  poderão nem mesmo ter conexão com a família Mendes, figuras principais do livro, conhecemos o médico Augusto Mendes, que clinica em uma pequena cidade, obtendo assim o respeito de toda a população; assim como seu filho, António, e seu neto, Duarte.

Mas é através de Duarte, filho de António, que servira nas campanhas portuguesas na África e nunca mais fora o mesmo, que acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos. Duarte é um menino com um talento nato para a música, mas sua relação com ela é bastante incomum, em grande parte por ter surgido quando ganhara um piano sem baterias, o que fazia com que nenhum som saísse do aparelho. Assim, para ele, o ato de tocar estava, de um maneira um tanto estranha, dissociada da música que saía – ou deveria sair – do instrumento: uma coisa eram seus dedos nas teclas, outra a música que dali surgia. Ser, então, considerado o maior beethoveniano de seu tempo dizia mais respeito – para ele – à técnica que à música em si.

Duarte conhecia aquela música por dentro. Intimamente. Como se conhece a casa que se habita, ao ponto de se poder caminhar às escuras dentro dela, ou de olhos fechados. Guiado exclusivamente pela memória. Uma memória que não era bem uma memória, mais um reconhecimento. Porque, quando os dedos começavam a tatear, ainda que pela primeira vez, uma determinada obra, não só aquela, mas qualquer obra de Beethoven, nunca o faziam com o deslumbramento de uma descoberta, com a excitação de quem se lança numa aventura, mas com a serenidade de quem se movimenta num espaço que lhe é confortavelmente familiar.

- página 69

Quem nasceu em famílias mais tradicionais, onde o convívio entre gerações é incentivado, sabe que os pequenos crescem com as memórias dos adultos. Desde muito cedo cresci com os causos de meus avós maternos sobre suas vidas quando pequenos na Bahia e em Minas Gerais, e o quanto elas me fascinavam é algo que beira o absurdo. Duarte cresce envolto nas memórias de seu avô e seu pai, mas a diferença aqui é que elas não são filtradas para o menino, e ele as absorvem na medida em que lhes são narradas, não importando o quão chocantes e inadequadas ao menino muitas vezes possam ser.

O que não me sai da cabeça é o tom nostálgico de toda a obra. O autor narra as transformações por quais Portugal vive, que incluem guerras e a ditadura, através de fatos que influem de uma forma ou outra ao dia-a-dia dos Mendes. Por vezes, o uso de flashback joga luz a algum fato que tenha ficado obscuro, mas isto é feito de uma maneira que não parece tão óbvia, e o leitor mais esperto conseguirá relacionar alguns pontos importantes.

Se Duarte é um personagem apaixonante – justamente por não ser nada óbvio ou transparente – meu interesse nele se deu após o relato do Índio. Até o ler, o personagem que mais me chamava a atenção era a figura do doutor Augusto Mendes, o tipo de personagem que tem todos os pontos necessários para ganhar nossas graças: bondoso, justo, com cara de avô bom. Após o Índio, Duarte de destaca.

Assim que [Duarte] terminou o último andamento da sonata vinte e seis, todo o auditório se mostrou rendido ao seu talento. Choviam gritos e aplausos. Havia lágrimas na plateia. Mas, se alguém se atrevesse a subir os três degraus que conduziam ao pequeno palco onde Duarte agradecia com demoradas vénias e lhe perguntassem qual o seu maior sonho, o mais certo seria Duarte responder que não tinha um grande sonho, mais dois: o Sporting ganhar a taça dos campeões europeus, e o Índio ser reconhecido, um dia, como o maior artista do seu tempo.

- página 70

Seu relacionamento com Índio me trouxe duas reflexões acerca de si como personagem: a primeira e a mais óbvia é que possui uma grande sensibilidade artística somada a uma intensa generosidade, ao ponto de eclipsar seu próprio talento para enaltecer o do amigo – que é também muito talentoso, como outras passagens atestam – e a segunda, pura conjectura, da ingenuidade de Duarte frente às relações e à vida como um todo. Certo dia ele convida o amigo para ir até sua casa para que o desenhasse enquanto toca ao piano, para ver qual seria a reação de Índio, um garoto pobre e totalmente inapto à educação formal, quando ouvisse os grandes mestres, e em como está música, erudita, influiria em sua arte. O desfecho é bem diferente do que Duarte esperava, e dele se pode conjecturar à exaustão.

Para não me estender muito, termino dizendo que, após ler “O Teu Rosto Será o Último”, percebi finalmente que não é preciso centenas de páginas para se escrever um bom livro, que narre a vida de alguém, supra seu leitor com informações pertinentes e faça parecer que ali tem um relato completo, de uma vida que se fez valer, e a respeito da qual se queira saber. Em um curto livro de estreia, João Ricardo Pedro se colocou entre os grandes. Se o lerem – e confiem no que digo, merece ser lido – só peço que me contém quem acham que merece o adjetivo.

 

O Teu Rosto Será o Último, de João Ricardo Pedro (2012) 192 páginas. ISBN 9788580446333 Editora LeYa.

{A+}

23 comentários:

  1. Nossa, gostei muito da resenha. a história é simples mas envolvente. Como cresci em meio a histórias de meus avós, deu para entender o motivo pelo qual a leitura dessa resenha me atingiu. Vou querer ler é claro.

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    1. Maristela, os autores portugueses estão mexendo comigo. Já havioa gostado muito de "No Meu Peito Não Cabem Pássaros", agora este também. É muito bom este reconhecimento, espero que os próximos da série me proporcionem sensação semelhante.

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  2. Uua!!! Que resenha emocionada e emocionante!!! Deu vontade de correr na primeira livraria e trazer o livro para casa!!! #SemMais

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  3. Adoreei a resenha, ainda não conhecia o livro, mas pela resenha fiquei curiosíssima pra ler!
    Já estou seguindo aqui ;)
    Estou começando um blog também, se quiser dar uma forcinha e seguir o blog eu agradeço *-*
    Passa lá http://coisasdaschirley.blogspot.com.br/
    Beijo!

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    1. Schirley, o livro é muito bem escrito. Vale a pena ler, com toda certeza ;)

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  4. Essa coleção desperta cada vez mais minha curiosidade. Esse tipo de literatura ~séria~ geralmente me deixa com os dois pés atrás - não gosto da atitude dos escritores desse gênero de forma geral, não gosto mesmo. As vezes, porém, tenho que me render - o que provavelemtne vai acontecer em breve com um livro desta coleção ^_^

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    1. Isabel, o bom desta coleção - ao menos do que li até agora - é que os autores tem uma despretensão que cativa, não soa com arrogância, e a leitura é simples. Estou gostando.

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  5. Luciano, até hoje não te agradeci por me falir, então, obrigada por me falir. rsrs

    Toda vez que venho até seu blog saio com uma wishlist imensa! Preciso dessa Coleção Novíssimos para ontem! A Leya podia fazer um box e vender todos os títulos juntos :)

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    1. Hahaha! Foi mal, aléxia, rsrs. Olha, esta coleção é mais que recomendaa viu!

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  6. Olá Luciano! Já li a obra e vim conhecer as impressões de um brasileiro sobre a mesma. Acho que compartilho do seu "Filho da Puta", só não sei ainda se para o bem ou para o mal. Houve momentos que me encantei, outros me cansei, ainda estou em conflito! rsrsrsrs De modo que, João Ricardo Pedro não passa despercebido mesmo! Agora deixo uma dica, se está gostando da Coleção Novíssimos e ainda não leu "Por este mundo acima" de Patrícia Reis, o faça, tenho um palpite que vc irá adorar, se quiser dar uma olhada na resenha que fiz dele, me peça o link pelo twitter @Retedesco. Abração.

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    1. Eu gostei muito dos dois que li até agora: "No Meu Peito Não Cabem Pássaros" e este "O Teu Rosto Será o Último". O p´roximo será "Para Cima e Não Para o Norte", e já ando ansioso. Eu me dei bem com o texto do João Ricardo Pedro, fluiu bem e me cativou. Espero que os restantes também me caiam bem. Vou, com certeza, pedir o link.

      Abraços.

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  7. Oi Luciano!
    Me empolguei muito com a sua resenha,senti cada emoção vivenciada por você.
    Eu não conhecia essa obra e confesso que fui fisgado,acho que vai ser interessante ler um autor português,começar por esse título parece ser uma boa pedida,até mesmo pelo tom nostálgico que ele evoca na obra.
    Abraço!

    Bruno
    http://oexploradorcultural.blogspot.com

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    1. Bruno, o livro é lndíssimo, e a colação tem se mostrado uma boa porta de entrada para se conhecer a nova literatura portuguesa.

      Abraços.

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  8. Estou querendo ler esta série já há algum tempo, mas como já mencionei, não sou fã de livros que se relacionem com a história de Portugal. Estranho, eu sei, mas fiquei com "pitizinho" da literatura portuguesa, sei lá. Ainda assim, acho que os livros contemporâneos podem me agradar mais, por isso, vou pegar um desses livros para ler no futuro.

    Abraços!

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    1. Lu, vale muito a pena ler, os dois que já li foram ótimos. Olha, eu tentei ler livros clássicos portugueses e não me dei bem, mas com estes tem funcionado.

      Abraços.

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  9. Oi Luciano! Como vai?
    Depois da sua resenha, corri colocar O Teu Rosto Será o Último na lista de vou ler do meu skoob. Como você, também acredito que grandes histórias não precisam ser contadas em longos livros.
    Eu tenho livro vários livros nacionais nos últimos tempos e me surpreendido positivamente. Eu acho que a Editora Leya é uma das melhores (se não a melhor) editora do Brasil e que os livros dela, além de bem acabados fisicamente, são bem revisados ou, no caso de internacionais, muito bem traduzidos. Gosto cada um tem o seu, mas eu acho que compartilho do gosto geral da editora, por que todos os livros que já li dela são excelentes!
    Parabéns pela resenha! Pretendo ler este livro, sim. Oportunidade não faltará!
    Beijos!
    www.nathlambert.blogspot.com

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    1. Nath, não e mesmo? Não são precisas centenas de páginas pra se contar uma boa história, ao contrário. E também tenho me relacionado bem com os títulos da editora, espero que continue assim ;)

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  10. Luciano, você acredita que eu só li o primeiro capítulo desse livro? Não sei o motivo, mas me cansei dele rápido. Não me ganhou, então eu comecei a ler outro livro, e outro, e outro. E bom, ele ainda tá lá me esperando.
    Se eu soubesse que o que estava me esperando seria TÃO bom, não teria o deixado de lado quando me dispus a lê-lo. :(

    Um beijo,
    Luara - Estante Vertical

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    1. Luara, ele fica bem melhor após isso, quando vamos criando laços com os personagens. Vale ler ;) e, como dizem, sempre é tempo.

      Beijos.

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  11. Eu adoro esses livros com histórias despretensiosas e aparentemente sem grandes emoções ou acontecimentos mas que envolvem o leitor e dão uma chacoalhada para o bem ou para o mal, mas nuca nois deixando indiferentes. A sua reação ao terminar de ler mostra isso.

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    1. Cris, este é um livro que faz exatamente isto. Gostei muito, e mexeu muito comigo como leitor. Vale a pena ler, com certeza.

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  12. Luciano
    EStou super querendo ler essa coleção Novíssimos, mas fico no querendo e um belo dia absorvo todas. rs
    Também gosto de livros assim, que conseguem dar oseu recado em poucas linhas.
    Ótima resenha!
    Beijos

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Oscar