4 de março de 2013

Sangue Quente [Resenha #111]

Sangue QuenteSinopse: R é um jovem vivendo uma crise existencial - ele é um zumbi. Perambula por uma América destruída pela guerra, colapso social e a fome voraz de seus companheiros mortos-vivos, mas ele busca mais do que sangue e cérebros. Ele consegue pronunciar apenas algumas sílabas, mas ele é profundo, cheio de pensamentos e saudade. Não tem recordações, nem identidade, nem pulso, mas ele tem sonhos. Após vivenciar as memórias de um adolescente enquanto devorava seu cérebro, R faz uma escolha inesperada, que começa com uma relação tensa, desajeitada e estranhamente doce com a namorada de sua vítima. Julie é uma explosão de cores na paisagem triste e cinzenta que envolve a "vida" de R e sua decisão de protegê-la irá transformar não só ele, mas também seus companheiros mortos-vivos, e talvez o mundo inteiro. Assustador, engraçado e surpreendentemente comovente, Sangue Quente fala sobre estar vivo, estando morto, e a tênue linha que os separa.

Em “Sangue Quente” a sociedade vive um Apocalipse Zumbi. O livro não nos diz como surgiram ou quanto tempo faz desde a queda da civilização e o ressurgimento dos mortos, o que é importante para tanto se criar um mistério em torno do fato quanto para se deixar aberta uma possibilidade de continuação que trate dos primórdios do acontecimento. Autor esperto!

Sendo assim, os últimos seres humanos vivos tentam sobreviver da melhor maneira que podem enquanto se veem cada vez mais isolados e distantes do mundo que conheciam como normal, e cercados por estranhas anomalias. Uma vez que toda  a estrutura social é atingida nesses casos, todo o resto vai junto: existe logicamente uma extrema dificuldade em se manter os serviços mais básicos, que dirá os setores de produção,  estes são quase impossíveis de se continuar operando.

Parte da estratégia de sobrevivência consiste em organizar excursões para coleta de recursos e suprimentos: roupas, medicamentos, alimentos, armas e munição, combustível, tudo o que possa ser útil e que não pode mais ser fabricado, já que uma constante nos apocalipses zumbis é a supressão da capacidade tecnológica e o inevitável retorno à idade da pedra.

Em uma dessas excursões estão Julie, Nora e Perry. Bem armados, partem em busca de recursos até que se veem cercados por uma horda de zumbis. Por que é claro que os zumbis também precisam organizar excursões em busca de comida. R, o zumbi que acompanhamos e que nos conta sua história em primeira pessoa, está no grupo e parte para o ataque, até que se depara com Julie.

R não compreende o que se passa com ele quando vê Julie. Na verdade, pequenos flashes da memória de Perry - os zumbis conseguem absorver lembranças de suas vítimas comendo seu cérebro – lhe dizem que ela é importante para ele, então decide levá-la consigo em um estranho ato de afeição.

Acredito que o maior diferencial na obra de Marion é a consciência que ele dá aos zumbis: eles se agrupam em “colmeias”, caçam juntos, tem instinto de sobrevivência e se reconhecem entre si nos grupos nos quais vivem. Eles são bem diferentes das figuras descerebradas, completamente desprovidas de raciocínio e movidas apenas pelo instinto e pela fome insaciável de carne humana que vemos comumente. O que é interessante, mas deixa furos enormes na história.

O mote do livro é o relacionamento que se cria entre R – ele só consegue se lembrar da inicial de seu nome – e Julie: uma garota humana e um zumbi; mas ele é difícil de se achar possível, e a aceitação de ambos quanto ao fato, em especial da parte de Julie, me parece rápida demais. Mesmo apavorada por estar perto de um ser que ela aprendeu a temer e matar para se manter viva, não entendi sua reação, e esta aparente apatia não combina muito com a moça determinada e cheia de vontade que nos é apresentada depois.

Da parte de R eu até compreendo melhor. Ele é questionador e está mudando – é o primeiro de um processo que pode trazer luz a um problema que parecia incontornável e insolúvel: se um vivo se torna um zumbi, o caminho inverso pode ser feito se o zumbi em questão se lembrar de como é ser humano? – e se agarra a essa mudança na esperança de dias melhores que o enorme vazio que é sua existência.

A matemática zumbi sempre foi mais ou menos clara para mim: uma pessoa é infectada de alguma forma, morre e vira um zumbi; um zumbi morde alguém e a vítima vira um zumbi. Apesar de parecer que tudo acaba conspirando para que se aumente o número de zumbis, o problema em si sempre me pareceu que se resolveria por si só: sem células vivas para reparar seu organismo, acabariam por se deteriorar e extinguir com o tempo.  O autor muda isto também, e ao invés de desaparecerem, após se deteriorarem os zumbis assumem a forma de caveiras que são mais fortes, rápidas, e tem um tipo de pensamento coletivo e comunicação por telecinese.  Como dizem, as coisas podem piorar, sempre.

Estas mudanças que o autor faz naquilo que se poderia chamar “conhecimento coletivo” com relação ao assunto – e que não mudaram muito desde que Raccoon City foi infestada por mortos vivos em Resident Evil – soam estranhas, e o modo como R e os demais zumbis agem contém furos que quem ler o livro vai perceber com certa facilidade.

Mas o principal aqui, e o que faz com que o livro seja realmente bom, apesar dos tropeços, é acompanhar R em suas memórias – tanto as suas quanto às compartilhadas por suas vítimas – e o pungente desejo de mudança que ele carrega em si. Torci por ele, para que conseguisse, para que se tornasse algo melhor. A sinopse tem uma frase interessante: “Julie é uma explosão de cores na paisagem triste e cinzenta que envolve a "vida" de R”. É exatamente assim que se enxerga o livro em certo momento. E desejamos que estas cores se espalhem por tudo à sua volta.

 

Sangue Quente, de Isaac Marion (Warm Bodies, 2010 –Tradução de Cassius Medauar, 2011) 252 páginas. ISBN 9788580440331 Editora LeYa. [Comprar no Submarino]

{B+}

14 comentários:

  1. Nunca gostei muito de histórias de zumbis, na verdade, o único filme do tipo que gostei foi Zumbilândia, então esse livro não é exatamente algo que tenha prendido minha curiosidade. Eu daria uma chance despretensiosa ao livro, mas não neste momento. Como não conheço muito histórias de zumbis, talvez essas "adaptações" que você mencionou me passassem batidas.

    Abraços.

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    1. Lu, eu gosto de histórias com este tema, e elas estão ganhando novo fôlego com o enorme sucesso que a série "The Walking Dead" vem fazendo.

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  2. Zumbis. Essas criaturas sempre me fascinaram. Resident Evil, Os Mortos Vivos e outras produções que abordaram esses seres constam no meu histórico. Na literatura minha experiência é mais recente, com Apocalipse Z e The Walking Dead, ambos me renderam uma ótima leitura. E talvez seja por isso que tenho uma resistência tão grande em relação a esse livro, essa deturpação me perturba. Sempre os concebi como criaturas movidas pelo instinto primitivo e inarredável de consumir carne humana, a possibilidade de vê-los raciocinando e agindo de forma menos irracional não me apraz. Ainda que as caveiras tenham despertado minha curiosidade. Mas, nesse caso, em especial, adoto uma postura conservadora.

    Abraços
    Juan - sempre-lendo.blogspot.com.br/

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    1. Juan, mas, de certa forma, é bom que se tente reinventar um gênero que está saturado pela falta de mudanças - eu tenho a sincera impressão que "The Walking Dead" nada mais é do que uma cópia bem feita de "Resident Evil"!

      Assim, mesmo com o estranhamento causado, dá para aproveitar a leitura ;)

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  3. Eu gosto e não gosto de zumbis. Tecnicamente, eles não fazem sentido: não existe um vírus/mutação genética que faça um ser vivo mudar seus hábitos alimentares e se torne canibal (e não estou entrando nessa parte de caveiras velozes com poderes telecinéticos). No entanto, existe uma forma de mutação que causa o famoso zero biológico, que pode até fazer sentido. Existe uma espécie de orquídea que envenena os pássaros que se alimentam de seu pólen e impedem as árvores e outras vegetações de nascerem perto delas. No entanto, por não se reproduzirem (os pássaros morrem ao tentar espalhar o pólen) e destruírem tudo à sua volta, essas orquídeas se tornam a única espécie à sua volta. E, como não podem se alimentar, morrem; deixando uma área vazia e infértil.
    Acho que faria o mesmo sentido com um zumbi: ele comeria carne humana/transformaria o humano num zumbi. Quando todos os humanos tiverem sido comidos ou transformados, não vai haver o que comer! Os zumbis "morreriam" de vez e criariam um zero biológico.
    Okay, escrevi um comentário monstro só para ser chata. A verdade é que eu amo histórias de zumbis, e não importa se são impossíveis que existir.
    Eu gostei muito da sua resenha, mas acho que, quando a gente lê um livro de zumbi, tem que ignorar as origens e furos na história, pois nunca ficaríamos satisfeitos. Aliás, acho legal essa ideia de ver zumbis como predadores. Nunca fui muito fã de corpos em decomposição com Q.I. menor que 2.
    Ainda quero ler o livro e tenho certeza de que vou gostar das adaptações do Marion para com os zumbis =D

    Beijos!
    www.nathlambert.blogspot.com

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    1. Ah, adorei o comentário ;)

      Então, a mudança que o autor trás é bem vinda mesmo, e acho normal que cause estranhamento agora no início. Quanto a este "Zero Biológico" que você citou, eu não conhecia ;) interessante isso!

      Beijos.

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    2. Adorei o seu comentário, viajei legal na ideia!

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  4. Oi Luciano!
    Eu adoro histórias de zumbis! Comecei vendo os filmes do George Romero e hoje acompanho a série The Walking Dead.
    Esse livro parece ser totalmente diferente, por mostrar o lado zumbi da coisa, que eles podem ter pensamentos e não são apenas semimortos indo atrás de miolos!

    Beijos,
    Sora - Meu Jardim de Livros

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    1. Sora, este é o trunfo do livro ;) nos contar a história pela visão de um zumbi, o que, admito, jamais havia imaginado!

      Beijos.

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  5. Adoro romances e sei que esse foi 'diferente' dos anjos e vampiros que viraram moda, mas de certa forma não senti aquele "tesão" para o ler. Não sei como explicar mas a história definitivamente não me cativou, mesmo a sua resenha sendo ótima.
    Ah, estou te seguindo e curti também. Conhecendo agora o blog, sacomé. :D

    - VITAMINA DE PIMENTA -

    Participe do sorteio do livro "O Circo Da Noite" no blog:
    http://vitaminadepimenta.blogspot.com.br/2013/03/sorteio-2-o-circo-da-noite-erin.html

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    1. Larissa, o livro tem suas falhas mas o todo certamente compensa a leitura. Vale ler ;)

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  6. Zumbis, Lobisomens, Vampiros, ficção policial não me atraem! #MeJulgue

    Nunca li nada na vida que incluísse zumbis no enredo, até aquele filme famoso com a atriz loira que talvez povoe mais os sonhos nerds que a Megan Fox eu passei batido em todas as vezes que meu irmãos e primos assistiram aqui em casa. Logo não tenho como julgar até que ponto Sangue Quente consegue se incluir no meio do enorme panteão de mitologia zumbitica que nosso presente tem criado.

    Sei apenas que no apocalipse zumbi eu seria uma das primeiras humanas a morrer e seria um dos primeiros zumbis a padecer na mão dos humanos violentos remanescentes... kkk..

    Ah, mas uma coisa eu sei, o R. deve ser um personagem solar, do tipo que gera empatia e isso é sempre uma coisa difícil de consegui e só por isso o autor merece o credito.

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    1. Hahaha! Ri muito aqui: não bastasse ser a primeira humana a virar zumbi seria a primeira zumbi a ser morta pelos humanos. Como assim!

      R é interessante, complexo - e isso pesa quando se fala de um zumbi - chato algumas vezes mas, no todo, um sujeito que os leitores vão gostar.

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  7. Me apaixonei pelo R haha livromuito booooooom muito fofo amei somente o fim que é meio dificil de entender....

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Oscar