17 de fevereiro de 2014

Misto-Quente, de Charles Bukowski [Resenha #160]

MistoQuente - Texto


Sinopse:  O que pode ser pior do que crescer nos Estados Unidos da recessão pós-1929? Ser pobre, de origem alemã, ter muitas espinhas, um pai autoritário beirando a psicopatia, uma mãe passiva e ignorante, nenhuma namorada e, pela frente, apenas a perspectiva de servir de mão-de-obra barata em um mundo cada vez menos propício às pessoas sensíveis e problemáticas. Esta é a história de Henry Chinaski, o protagonista deste romance que é sem dúvida uma das obras mais comoventes e mais lidas de Charles Bukowski (1920-1994).

Verdadeiro romance de formação com toques autobiográficos, Misto-quente (publicado originalmente em 1982) cativa o leitor pela sinceridade e aparente simplicidade com que a história é contada. Estão presentes a ânsia pela dignidade, a busca vã pela verdade e pela liberdade, trabalhadas de tal forma que fazem deste livro um dos melhores romances norte-americanos da segunda metade do século 20. Apesar de ser o quarto romance dos seis que o autor escreveu e de ter sido lançado quando ele já contava mais de sessenta anos, Misto-quente ilumina toda a obra de Bukowski. Pode-se dizer: quem não leu Misto-quente, não leu Bukowski.


Pecando pela generalização, ouso dizer que todo leitor deveria ter um Bukowski na estante. E, caso pudesse ter apenas um dele, que fosse o “Misto-Quente”. Já gostava muito do autor em “Hollywood”, primeiro livro dele que li, e “Pulp”, mas aqui ele atinge um outro patamar.

Misto-Quente é um romance de formação com traços autobiográficos considerado por muitos como o melhor livro do autor. Concordo. Enquanto seguimos Henry Chinaski, o protagonista, da infância até a faculdade – compreendendo períodos importantes da história norte-americana, indo do pós Grande Crise de 1929 até o ataque japonês à Pearl Harbor – conhecemos os detalhes de sua vida que fizeram foram moldando-o e que culminaram na figura que encontrei em “Hollywood”. Bom, afinal de contas é isso que um romance de formação faz.

– Este é o Henry Jr.?
– Sim.
– Ele só fica olhando. É tão quietinho.
– É assim que queremos que ele seja.
– As águas paradas são as que têm maior profundidade.
– Não nesse caso. A única profundidade que ele tem são os buracos dos ouvidos.

O livro é um tanto mais ácido que os outros dois que li, há aqui uma sensação de incapacidade, de impotência, um desejo de não fazer nada que lhe seja imposto, mas de ser alguém, de se tornar uma pessoa que agrade a si mesmo e não fique preso às convenções que é comovente. Existe um tom de desafio que permeia o texto e o deixa um tanto mais amargo. Se há um valentão na escola, ele o enfrenta. Se dizem algo de que não gosta, responde com um desaforo.

O que passa a impressão de que ele se sente superior à quem o rodeia, o que não poderia ser mais descabido. Introspectivo, ele prefere ficar de canto, observando. Ele é, sim, consciente do ridículo que é a sociedade e suas convenções, mas sua negativa em fazer parte e sua determinação em se opor tem muito mais relação com o sentimento de vazio que leva consigo que com o “tenho algo a lhe provar”. Claro que seu sarcasmo, sua ironia, e o aparente dar de ombros frente às situações faz com que quem leve a vida a sério veja nele um grande desperdício, mas, se ele se importa com isso, não os deixa saber, e é assim que tem de ser.

Nunca me sentira tão bem. Era melhor do que masturbação.
Fui de barril em barril. Era mágico. Por que ninguém havia me falado a respeito disso? Com a bebida, a vida era maravilhosa, um homem era perfeito, nada mais poderia feri-lo.

É aqui também que o menino Chinaski cresce, conhece a bebida, aprende a apreciar às mulheres – apesar de ter dificuldades com elas, consciente das marcas que a acne deixara em todo o seu corpo – e as brigas. Muito do livro é feito disso, e são nesses momentos que mais gosto dele como escritor: o fato de não perder o bom humor frente às maiores tragédias humanas, em como consegue tirar uma frase esperta após levar um soco de um amigo que o nocauteia e o deixa jogado ao chão, usando roupas pequenas demais, com traços de vômito e bebida barata, morando em uma espelunca e contando os centavos para o próximo trago.

– Ei, garoto!
– Que foi? – olhei para ele. Era um cara grande, na casa dos vinte, braços peludos e uma tatuagem.
– Pra que porra de lugar você pensa que está indo? – ele me perguntou.
Estava querendo se exibir para sua garota. Ela era gostosa, a cabeleira loira balançando ao vento.
– Comer seu cu, parceiro! – eu falei.
– O quê?
– Eu disse: comer seu cu!
Mostrei o dedo médio.

Mas aqui também ele descobre seu amor pelos livros – e tece comentário mordazes sobre diversos escritores “de ponta” –, e nasce seu desejo de também contar histórias, de ser um bom escritor, mesmo que, já na época, e como lhe contam alguns amigos, seu texto seja raivoso, tenso, marcados pelas características que definem tão bem quem ele é.

Bukowski é um narrador que domina seu texto e prende seu leitor. Não há com fugir dele ou deixar algo para depois: você o lê, rindo da miséria de Chinaski enquanto torce para que ele se dê bem – ou ao menos permaneça consciente. O vocabulário segue o padrão Bukowski, mas somos todos adultos, não é mesmo, então não há porque ficar chocado com algo pois está tudo dentro do contexto, nada sai gratuito, nenhum xingamento fica solto ao vento, ele sempre, sempre, tem uma razão de ser.

Sem rasgar mais seda, peço apenas que o leiam. Vale cada linha.


+ do Autor: Pulp

 

Misto-Quente, de Charles Bukowski (Ham on Rye, 1982 –Tradução de Pedro Gonzaga) 320 páginas. ISBN 9788525414656 L&PM Pocket. [Comprar no Submarino]

{A+}

16 comentários:

  1. Eu gostei muito desse livro. Foi minha primeira experiência com Bukowski, e não será a última. E como você bem colocou é um livro que vale cada linha. Ótima resenha.

    Abraço
    Juan - sempre-lendo.blogspot.com.br/

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  2. Que resenha linda!!! Eu já estou com o autor no Kindle, só falta a leitura mesmo. Uma passo curto de cada vez, mas uma hora eu chego lá! Acho que vou ler Pulp antes, eu gosto de deixar as ditas melhores obras mais para o final.

    Abraços!

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    1. Ahhhhhh! Tomara que goste dele ;) tomara! E começar por Pulp é uma boa escolha, ele é ótimo, e não tão denso quanto os demais.

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  3. Quando penso que nunca li nada do Bukowski, me envergonho. Mas, acho que estou esperando um momento certo de mergulhar de cabeça na escrita do autor. Ótima resenha como sempre.

    Lucas - Carpe Liber
    livrosecontos.blogspot.com

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    1. Lucas, espero que o leia, é um autor do qual gosto muito, mas não é uma unanimidade. Espero que você goste ;)

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  4. Menino, comprei ontem mesmo o ebook. Você fala tanto do autor, que quando vi Misto Quente pensei: "Com certeza ele iria recomendar".
    E agora estou aqui com você dizendo: "Apenas leia".
    É claro que vou ler!!!!! Eu amei sua resenha!!!!

    Perfeito!!

    Bjks

    Lelê Tapias
    http://topensandoemler.blogspot.com.br/

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  5. Eu adoro as resenhas dos livros que ganham A+ são lindas, verdadeiras crônicas literárias. Essa eu li sorrindo!!! E vou ler Bokowski... e quando ler, se tiver uma crise existencial vou da todo o crédito a você!

    Cheros, Luciano e sinceramente, textos assim me obrigam a dizer: "Obrigada por compartilhar!".

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    1. AH, mas daí eu fico convencido! Muito obrigado ;) fico feliz que tenha gostado XD

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  6. Que resenha magnífica! Empolgada, empolgante! Ah, já ouvi falar muito do Buk. Misto-quente é muito bom, ao que parece, mesmo. Li uma resenha que fala MUITO bem do livro e agora a sua resenha só me fez ver que eu já deveria ter lido esse livro. O que eu gosto em Buk, pelo menos do pouco que conheço, é seu lado boêmio, seu lado cru de escrever, de dizer sem rodeios, dessa melancolia, amargura e acidez diante do mundo.
    Preciso ler MESMO esse cara. E vou começar por esse que você indicou. ;)

    Um abraço, Luciano!

    Sacudindo Palavras

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    1. Erica, ele não tem compromisso nenhum com ser bonzinho ou agradar a quem quer que seja. Isso eu também adoro nele, ele é sincero sem ter medo de nada ou da forma como vão interpretá-lo. Enfim, espero que o leia, vale muito a pena ;)

      Dois abraços!

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  7. Bukowski é dos grandes! Fica naquela patamar láaaaaaaaa do alto referente à literatura.
    Literatura visceral sempre me chama a atenção.
    Recomendo!

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  8. Não conhecia o autor ainda e foi minha primeira vez ao ler um livro dele. Posso te dizer que achei super interessante. O autor tem uma criatividade incrível e estou ansiosa pra ler este livro e conferir tudo que menciona aqui.

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  9. Nunca li nada do autor, mas sempre tive curiosa por vários elogios feitos a ele, e agora mais um. Se eu pegar algum livro do autor, vou começar por esse

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Oscar